segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Explicando a náusea existencial

Enjoo de tudo ao redor. Pode-se sentir seu próprio cheiro. Um mal-estar que é sentido quando tem-se a mais plena consciência de que você realmente existe. Quando você entende que você existe. Cada tecido, célula, molécula, átomo, próton, elétron e nêutron, você consegue sentir cada um deles. Todos vivos; você vivo.
Torna-se plausível à pobre razão humana a grandiosidade de que tudo, absolutamente tudo, é concreto: de que você é concreto, sua alma é concreta, as estrelas, os buracos negros supermassivos, o universo, os ácaros, as bactérias e os vírus.
Sente-se grande e poderoso e, ao mesmo tempo, minúsculo e inferior. É esticado e puxado ao mesmo tempo. Não faz muito bem ao estômago essa sensação, nem ao equilíbrio. Náusea. 
A compreensão de que o mundo ao redor é real: é puro, bruto e concreto, não é uma invenção, sequer uma ilusão. A visão fica um tanto turva, há uma tontura, a impressão que vai cair ou de cara ou de costas no chão, ou os dois ao mesmo tempo... Isso ocorre porque todas as ilusões sobre a vida desaparecem, pois é o momento crucial em que enxerga-se o ambiente ao redor como ele o é: real, irracional, ilógico e até mesmo cruel . Muito cruel. 
As expectativas relacionadas ao futuro desaparecem. As memórias relacionadas ao passado parecem ser uma mera criação de sua cabecinha. Sonhos somem. Tudo é verdadeiro e nada mais. O sangue pulsa nas têmporas. Só o que passa a ter existência no mundo dos sentidos nesse momento é você e o momento. Os sentidos são sentidos em sua máxima potencialidade, todos os cinco ao mesmo tempo; tão fortes que se anestesiam em uma dor prazerosa. 
Segue-se então para uma fase de negação. Ânsia de vômito. Tenta-se negar com veemência a Realidade; uma vontade instintiva de fuga do local pois as paredes do cômodo em que essa situação se dá parecem ter, em média, de 5 a 6 metros de altura, além de parecer que elas estão comprimindo-se sobre seu corpinho. Aliado à essa vontade de vomitar, sente-se um tanto de medo. Claustrofobia, ágorafobia, e claustrofobia de novo e vontade de gritar, de horror e de pavor. 
Com isso, sente-se uma certa tontura ao descobrir a imensidão do universo lá fora e saber que ela existe, mas não conseguir dimensiona-la no seu pobre cérebro humano. E ainda também descobrir que você faz parte dele. Sim, os joelhos tremem. Tristeza e felicidade se misturam. Falta ar, ou toda a quantia de ar é exagerada e parece querer ser aspirada toda de uma só vez pelas narinas ínfimas. 
E então, o grande susto, quando sente-se uma pressão no topo de sua cabeça. Ao olhar-se em seus próprios olhos, num reflexo de espelho, de poça d'água, do que quer que seja, você finalmente entende que não há apenas um universo lá fora, mas sim um também dentro si próprio. E um dentro de cada um ao seu redor. São milhares, milhões de infinitos imensuráveis ao redor de seu infinito, dentro de infinito que é o universo em que existimos.
Você descobre então que há explosões dentro de você. Descobre que você também é um deus ali naquele pequeno sem-fim...
A partir desse momento, duas coisas podem ocorrer: a primeira é ignorar e negar tal fato por temor a si mesmo e sua potencialidade, já que, humildemente, na consciência de sua condição de ser humano, tem medo de fazer alguma besteira com isso; ou até mesmo por não querer uma grande responsabilidade. A segunda é enlouquecer por completo. Pode-se também viver no meio dessas duas situações, o que causa extremo sofrimento, não aconselho essa opção.
Feita a escolha, um pouco de tontura ainda pode ser sentida até que todas as ilusões, quase para sempre perdidas, possam ser recuperadas. Se a opção for pelo primeiro caso citado acima, você seguirá sua vida como se nada tivesse ocorrido e guarda essa epifania como um segredo trancafiado às sete mil chaves, o qual jamais será compartilhado com alguém. O indivíduo poderá seguir sua vida, ou fingir segui-la, mas ele sabe que não é mais o mesmo e nunca mais verá as coisas do mesmo jeito. Provavelmente terá algum tipo de problema fisiológico relacionado à gastrite. Se, em outras condições, a opção for pelo segundo caso, gostaria de parabeniza-lo pelo ousadia e por estar caminhando em direção à sua perfeição.

domingo, 30 de dezembro de 2012

Coisas que eu gosto:

dia ensolarado de inverno;
beijinho na testa;
suco de melancia;
sentir preguiça num dia chuvoso;
comprar livros;
tomar banho ouvindo música;
dar risada em solenidade séria;
girar, girar, girar até ficar tonta e cair no chão;
ouvir a Nona de Beethoven;
acordar depois de ter tido um sonho bom;
comer comida boa;
dormir em uma cama gostosa com um travesseiro de penas;
gatos se espreguiçando;
tomar vinho com a minha avó;
poesia;
prosa;
sugar resto da bebida no fundo do copo com o canudinho;
gente que me ajuda, mas que eu nunca imaginei que fosse um dia fazer isso por mim;
pintar as unhas de azul;
enfiar um monte de comida na boca;
espirrar;
colocar a mão no saco de grãos no mercado municipal;
andar descalça na grama;
jogar coisas pela janela do meu apartamento;
cabelo bagunçado pelo vento;
entrar no meu guarda-roupa e fechar a porta dele comigo dentro;
passar o dedo na chama da vela;
ironias que falam quando estão de mau-humor;
molho agridoce;
barulho da xícara batendo no pires;
aquelas ondas circulares de quando uma gota de chuva cai em uma piscina;
enrolar a fita métrica da tia Dirce só pra joga-la pro alto e desenrola-la;
picolé;
fotos antigas com pessoas desconhecidas;
Ciências Humanas;
ficar sozinha;
cheiro de maresia;
escrever meu nome completo com várias tipos de letras;
andar sem roupa em casa;
todo e qualquer tipo de expressão artística;
andar na Paulista;
segurar a respiração debaixo d'água, pra depois, ao voltar pra superfície, sentir o alívio de respirar;
batom vermelho;
pessoas que encostam a cabeça na janela do vagão do trem;
cheiro de fruta na quitanda;
assistir ao jornal na tevê;
escrever nas paredes;
ficar em silêncio;
falar pouco;
óculos;
olhos verdes;
pele pálida;
observar o comportamento de quem senta atrás de mim no cinema e no teatro;
dragões;
Alice no País das Maravilhas;
mitologia;
folhear revistas de trás pra frente;
pizza;
fotografar flores;
gérberas vermelhas;
roubar raspinha de chocolate de cima da cobertura do bolo;
garrafas;
almofadas;
canecas;
trilhas sonoras de filmes mais do que os filmes propriamente;
casacos;
All Stars;
a Lua;
asas abertas;
bilhetinhos que a minha mãe deixa pra que quando eu acorde eu saber onde ela foi;
folhas secas caídas no chão;
xícaras;
pimenta;
lápis de cor;
cores do fim da tarde;
forma das nuvens;
barulho de máquina de escrever;
ficar olhando pras estrelas;
gente que sabe muito e mesmo assim tem humildade pra ensinar;
morder bochechas;
ter uma nova ideia;
x-egg-bacon-salada;
voz macia;
cheiro de papel;
roupa de brechó;
ficar imaginando coisas;
observar pessoas desconhecidas;
ficar inventando histórias sobre as vidas delas;
chapéus;
gente bem-resolvida que faz terapia;
camisetas;
piscinas;
ir ao supermercado e entrar no carrinho;
barulho de trovão;
obras surrealistas;
gente que não fica tentando ser alguma coisa;
desenhar no vidro embaçado;
cabides;
tintas;
chaveiros;
incenso;
suco de laranja com gelo e açúcar;
gente que se faz de fria porque ama demais e se utiliza desse artifício para não sofrer muito;
prédios;
respirar;
roupas pretas;
regras de três;
gente que não sente a mínima necessidade de explicar seus atos;
amigos que chegam na minha casa e abrem a minha geladeira;
ir ao sítio da tia Ana;
dançar no metrô;
qualquer mulher que tenha "Maria" no nome;
cheiro de pó de café;
tecidos estampados;
lâmpadas de Natal;
passar madrugadas acordada;
e dormir de dia;
roupas que não apertam o quadril;
cozinhar para mim;
chá de canela e gengibre quando tenho gripe;
epifanias;
fazer xixi;
trocar olhares;
gaiolas vazias;
andar à pé;
pracinhas de cidades do interior;
Kombis;
escadarias;
sentar debaixo de árvores;
quintas-feiras;
alongar as pernas;
ouvir conversas alheias das pessoas no transporte público;
moletom com capuz;
pão com requeijão;
combinação dos instrumentos do Tango;
me imaginar jogando um sapato nas pessoas com as quais eu não simpatizo;
passar perfume de lavanda depois de tomar banho;
fingir que eu sou o maestro enquanto ouço música clássica;
cortar o cabelo;
desenhar;
cortinas movimentadas pelo vento que vem do lado de fora;
demonstrações de afeto em livrarias;
cultura inútil;
falar sozinha;
sair de pijama na rua;
e só.




sábado, 1 de dezembro de 2012

Sentido

Fazia um pouco de frio, mas só um pouco. O cobertor cobria-me até o pescoço.

Em minha companhia, apenas o estranho barulho da minha digestão. Não havia mais nenhum outro barulho em mim. Nem sequer uma música com letra irritante e repetitiva.
Apenas o silêncio que me fazia ouvir o barulho do ar sendo deslocado pelos carros em alta velocidade em uma rua ao longe. Mas isso longe, bem longe. Longe mesmo.
Eu não me movia. Fiquei ali, simplesmente intacta. Os impulsos nervosos pareciam não existir. Não conseguia ouvir nem a minha própria respiração, de tão quase ausente que ela estava. Respirava (respirava?), eu, levemente, não sentia meus pulmões inflarem, nem o ar entrar ou sair pelas narinas. Não sentia o movimento do meu ventre empurrando a superfície.
Eu não sentia nada.
Um corpo que está imóvel tende a permanecer imóvel.
Entrelacei meus dedos. Não senti minha própria força nem o toque dos meus dedos. Nem meu próprio toque. Então soltei-os.
Abri meus olhos, e mesmo assim, tudo estava escuro. Fechei meus olhos e tudo continuou existindo escuro.  Na verdade, nada estava existindo ali. Na verdade, tudo continuava a existir, menos eu. Continuei olhando para o teto.
Não conseguia pensar em nada. Associações livres sem sentido e sem graça. Não estava conseguindo nem sequer criar alguma coisa divertida, para que eu pudesse pensar com um cérebro endurecido.  Meus pensamentos não conseguiam sair dali.
Constatei, milagrosamente, que nada fazia sentido ali. Lembre-me então que se eu repetisse uma palavra várias vezes ela também perderia o sentido. Pensei em uma colher.
Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher. Colher.
E a "colher" não perdia sentido. Continuei insistindo, colher, colher, colher, colher, colher, mas não adiantava. Até a colher me fazia sentido e eu não.
Questionei-me por que eu havia pensado em uma colher, afinal. Quanto mais eu pensava em um sentido, quanto mais eu tentava analisar minuciosamente cada existência do que quer que fosse naquele cômodo, menos sentido fazia. Não havia lógica nenhuma que convencesse meu raciocínio.
Sentido, sentido, sentido. "Sentido" não fazia mais sentido.
Nada fazia sentido, tudo não fazia sentido.
Olhei as horas no relógio de cabeceira. Zero-zero e vinte quatro. Zero-zero e vinte cinco. Zero-zero e vinte seis. Sete, oito, nove... mil. Contei até mil.
Continuava sem sono. Continuava esperando uma resposta. Mas qual era mesmo a pergunta?
O teto era pouco interessante e as paredes pouco inspiradoras. Eu estava me sentindo bem? Ou isso era sentir-se mal? Realmente, eu estava sentindo alguma porcaria?
Não estar sentindo nada, era, afinal, sentir alguma coisa? Porque, mesmo que eu não estivesse sentindo nada, era sentir alguma coisa sentir nada.
Será que eu ainda estou viva?, perguntei-me e não soube responder.
Olhei as horas mais uma vez. Uma e pouco. Pelo menos alguma coisa havia se movimentado nesse meio tempo: o tempo.
Tudo se apagou.
Abri meus olhos, surpresa pelo fato de abri-los. Não havia percebido em que momento os fechara. Tentei buscar na falha memória minha onde é que eu estava. Em verdade, eu só havia percebido que tudo estava apagado, que eu estava apagada quando acendi. Cochilei?
Ou deixei de existir por alguns minutos?
Dei-me conta, então, que eu havia conseguido não sentir nada, mas sim o Nada, porque eu estava vazia.
Eu tinha conseguido sentir. SENTI!

E então, aconteceu de repente, entre um segundo de descoberta e outro, totalmente imprevisível.

Assustei-me.
Um ronco molhado ribombou em meu estômago. Senti algo estranho, como se ele estivesse se espremendo em si mesmo. Senti! SENTI! Eu havia conseguido sentir algo! Sorri alegremente.
Imobilizei-me por mais alguns segundos para ver se conseguiria sentir de novo. E consegui! O estranho órgão retorceu-se de novo e, dessa vez, ainda senti um gosto amargo e azedo em minha boca. Respirei fundo.
Senti-me, então, feliz. Tão feliz! Tão plena e tão lógica. Tão viva, sim, havia conseguido a confirmação: eu estava viva. Jamais esperaria que algo assim ocorresse, mas já que ocorreu, fiquei resplandescente em acatar tal acontecimento. Fui libertada daquela inércia. Tudo reviveu em mim. Um arrepio. Um sorriso. Eu conseguia sentir, e repentina e surpreendentemente, tudo voltou a fazer sentido.
Estava tendo uma epifania. Senti uma dor em minha barriga. Um pedido, um instinto, eu não estava extinta, ele dizia. Senti vida, passado, presente, futuro.
Olhei para o relógio ainda mais uma vez e não me importava de maneira alguma que horas eram. Me descobri, sentia calor!
Conseguia ouvir aquele barulho maravilhoso dentro de mim.
Fui ressuscitada, o ar me inspirava! Levantei-me corajosamente. Precisava de uma colher, rápido, iria comer uma fatia daquele resto de bolo na geladeira.
Eu sentia! E que maravilhosa sensação!

Sentia fome.