Apenas depois, bem depois...
Recostou-se na porta. Inspiração funda.
Sorriu. Ironicamente. Uma lágrima brotou em seu olho esquerdo e escorreu molhando seu rosto.
Água.
-Também é água... - murmurou sozinha.
Era feita de mais ou menos 70% de água, diziam aqueles livros na biblioteca. Isso poderia explicar a razão pela qual ela se sentia tão afogada em si mesma?
Mais uma inspiração profunda. Agora para terminar de tomar coragem.
Sim, pois o medo também era um instinto. Mas como podia temer algo tão óbvio e simples?
Tudo era tão assustador e absurdamente simples. Teme-se a simplicidade pois temos medo. O medo nos complica para fugirmos da simplicidade. O pior medo é aquele do desconhecido. E era apenas para isso que queria caminhar: para o desconhecido.
Ela era simples e desconhecida. Era mais funda do que pensava ser.
A água era a origem da vida, onde tudo havia começado, dizia a Ciência. Não sabia de onde vinha e tinha perdido a noção de para onde estava indo. Estava sendo apenas levada por uma correnteza e havia se cansado de nadar contra ela. Não via mais sentido em tentar continuar.
Da água vieste, para a água voltará.
Felicidade e tristeza também seriam instintos?
Buscava agora apenas sua origem. Queria respostas.
Mas queria, acima de tudo, como sempre fizera em sua vida, testar os limites.
No fundo, não queria nada daquilo, mas achou plausível a saída mais simples, porque isso também é um instinto: a fuga.
Seria simples, e a decisão estava tomada, mas queria fugir. Evitou olhar para a enchente atrás de si.
Caminhou lentamente até a velha banheira de porcelana já amarelada. Tapou o ralo. Abriu a torneira em um rangido seco do metal.
A água fazia um estrondo em contato com a porcelana, como uma explosão. Observava-a encher. Era tudo que restava fazer. E conforme ia enchendo, ia se calando lentamente até o calmo som de água tocando a si mesma.
Queria até a última gota possível de caber ali.
Foi tirando sua camiseta branca. A calça velha. As roupas íntimas escorreram por suas pernas e caíram aos seus pés. Jogou-as num canto do banheiro gelado. Nua, sentiu um arrepio correr sua pele pelo frio.
O frio dava pontadas em seus ossos. Nua, completamente nua. Do jeito humilde e único que viera ao mundo. O fim do ciclo, como veio, queria voltar. Dirigiu-se com os pés descalços nos azulejos frios até o grande espelho. Olhou-se de soslaio. Sua pele pálida, o cabelo um pouco desgrenhado, os olhos inchados, abraçava-se, escondendo-se de si mesma. O barulho contido das águas era tudo o que ouvia.
Ainda não tinha conseguido definir se aquela era sua atitude de maior covardia ou de maior coragem...
Sem resposta, foi distraída pelo silêncio da água na banheira. O mesmo som de pequenas explosões. Rapidamente fechou a torneira.
Estava cheia até a borda.
Prestes a transbordar.
Na verdade já estava transbordada. Estava inundada. Não conseguia mais fugir, ilhada. Doía não ter mais fôlego.
Sentou na borda da banheira. Observou o vapor quente que levitava lentamente. A leve bruma que turvava toda a sua visão. Olhou a si mesma, agora refletida na água. Aproximou-se mais de sua imagem. De si mesma. Viu-se refletida em suas próprias pupilas aquosas e narcisísticas, incolores no reflexo. Olhou fixamente para si, quase contemplando-se. No espelho da água, se viu condenada a viver consigo mesma, viu seu castigo: mergulhar em si mesma.
Coragem ou covardia?
Entrou na banheira, primeiro uma perna, depois a outra. Devido ao seu volume, um pouco da água esparramou-se pelas bordas e, num estalo, espatifou-se no chão em um barulho sólido. Ficou imóvel, até a água aquietar-se e a tremulação sumir e para que uma superfície perfeitamente lisa fosse sintetizada.
Mais lágrimas esparramaram-se para fora de seu rosto. Chorou. Quase uma cachoeira. Dura, imaleável, soluçando deixou que uma daquelas lágrimas escorresse lentamente e, em forma de gota, caísse na superfície lisa. Ondas circulares se formaram deformando o reflexo do seu rosto. Chorou por um bom tempo em um ato de purificação interior. Sentia do sabor salgado da sua sujeira quando as lágrimas escorriam pelas curvas do seu resto e tocavam a sua boca. Engasgou com a água de suas próprias lágrimas. Chorou até extravasar. Chorou até seu abdômen doer e seus olhos arderem, até perder suas forças em nome de sua pureza, até perder o fôlego e sentir seu corpo entorpecido dentro da água e parar por medo de transbordar a banheira...
Aquietou-se depois do expurgo. O calor era transmitido lentamente das moléculas de água para seu corpo gelado em uma sensação de prazer. Sentiu-se acolhida, amada. Quase mais uma vez no ventre de sua mãe flutuando infinitamente no líquido amniótico. Fechou os olhos e recostou-se. Por alguns minutos ficou sem se mover. Apenas o fluxo do calor e de seus pensamento se movia. Sua respiração soluçava ainda em um resquício do choro purificador. O movimento de seus pensamentos fazia seus sentimentos corressem como um rio subterrâneo dentro de si. A pulsação ia baixando lentamente. Era possível fazer um rio parar de correr... Lembrou-se naquele momento de quando alguém lhe contara sobre os rios, que, mesmo se eles fossem represados com aquelas barreiras gigantescas de concreto, o seu curso original do continuava perfeitamente intacto sob as águas estagnadas.
Ela simplesmente não podia acreditar. Como era possível? No fim das contas, a essência não poderia ser perdida. Ela sabia que não ia ser esquecida. Não ia mais ser esquecida. No fundo, ela tinha a certeza de que fazia aquilo apenas para ser lembrada... Melhor, para lembrar-se.
Tão triste e angustiada, afundou-se com os olhos cerrados. Estava na hora de ser rebatizada por sua própria escolha. Precisava daquilo, a única coisa que a água poderia lhe dar: a purificação. Seu corpo pequeno cabia estirado no fundo na banheira. Afundou-o rapidamente sob as águas. Sufocou rapidamente sua respiração e começou a sentir a pressão. E ficou ali, imóvel, na quietude. Não ouvia barulho algum. Esperou.
Só podia esperar. Aquietou-se dentro de si, porque a superfície estava hiperativa demais. Tentava não lutar contra a situação, mas era impossível, tentava concentrar-se e não sentir o incômodo de não respirar. Cobrou-se todas as forças para lutar. Seu corpo queria sair dali. Mesmo imóvel, dentro de si utilizava-se todas as suas garras para simplesmente prevenir uma única respiração que fosse. Não era sua escolha fazer isso. Sentia o incômodo de não estar em seu ambiente natural.
Era justamente contra isso que lutava, contra si mesma. Tudo o que ouvia era sua própria pulsação cada vez mais vigorosa. A necessidade. Era uma necessidade: ela precisava respirar. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Precisava. Seu corpo gritava. Os punhos cerrados e ela os negava. Não. Dominava seu instinto de respirar. Não, não era isso que ela queria. Seu músculos travavam sozinhos. Não!
Aguentava a luta contra a água. Sentia a força de si, uma força primordial, inconsciente. Sentia tudo dentro de si querendo sair. Um instinto. A maior força existente dentro de um ser vivo, era o que o fazia vivo. NÃO! - gritava no silêncio submerso de sua mente. Negava seu instinto.
Não sentia mais seu corpo tocar a superfície da banheira. Submersa em si, lutava, pois era aquilo que a água que a submergia lhe dava: a vontade de respirar.
Por consequência a vontade instintiva de viver. Ela queria o mais simples sentido da vida: o prazer de estar viva. Novamente. Não queria mais saber se era covarde ou corajosa. Não, não era isso que importava no fim das contas. Queria apenas voltar ao seu ser primordial, ao prazer e a dor de sua primeira respiração no trauma do nascimento. Não sabia se aquela atitude era boa, má, bobagem ou bela, tudo o que ela queria, no fim das contas, era resgatar-se.
Não sabia quanto tempo já estava lá em baixo. Cada vez o instinto a instigava. Física e mentalmente. A beleza do instinto que lhe obrigava a ter vontade de viver. Ela realmente achava isso lindo... Desde Aristóteles, Thales de Mileto, a Bíblia, o Alcorão, a água era o elemento primordial. A grandeza da água, e ao mesmo tempo sua leveza e sua fluidez. Um rio não banha o mesmo homem duas vezes. Um homem não é banhado pelo mesmo rio duas vezes.
E então, já sem quase em seu último impulso abriu os olhos. Viu todas as imagens desfiguradas do teto branco que parecia se afastar. Já estava sufocada, esmagada, asfixiada. Mesmo sentido seu corpo já indelével e fragilizado como se todo um oceano recaísse sobre si, ele ainda gritava que precisava respirar. Urrava. A garganta dava um nó, o peito prestes a explodir, oprimida, sentia sua matéria flutuar em uma estranha sensação de tontura. Como a angústia. Não sentia mais acima ou abaixo, flutuava no infinito, entorpecida.
O fim. Os olhos já se fechando sem o consentimento, o corpo insensível e a alma ascendendo. Só tinha mais um ato a realizar. Como sua última vontade, elevou os braços acima do corpo para a superfície como uma conduta de glorificação. Sentiu o frio e a água escorrer por sua pele aquecida, sentiu os pelos arrepiarem-se. Sentiu mais uma vez a intensidade da vida. Agradeceu a si mesma e sentiu que havia se vencido.
Sem firmeza muscular, seus braços desabaram pesadamente para as bordas da banheira. Constatou pela dor o mundo natural. Cravou as unhas nas bordas.
E pela força do instinto de inspirar, ergueu-se majestosamente à superfície. Provocando uma grande onda, imergiu suntuosa derrubando litros de água no chão em uma grande explosão num urro magnífico de uma expiração poderosa.
Tossindo, afogada com pequenas gotas, notava que uma grande onda de prazer percorria seu corpo fazendo cada molécula pulsar intensamente enquanto soltava outro urro em uma inspiração. Inspirou purificada. O mais fundo que pôde, sentindo o prazer inconsciente de respirar, a satisfação de suas narinas e de seus pulmões em fazê-lo. Não, não era de fato algo que podia controlar, isso era biologicamente óbvio. O mistério era de agradar um instinto. Como a satisfação do instinto pode ser prazerosa? Como a respiração pode ser tão absurdamente prazerosa?
Era tão absurdamente simples e prazerosa. Inspirou e respirou, primeiro desesperada. Clamava por ar desesperadamente, precisava satisfazer-se de vida. O tórax movimenta-se em descompasso, produzindo respirações mais curtas e outras por vez mais longas, tudo para lhe provar que não estava mais afogada. Tossia e expurgava.
O ar seco provocava dores em suas narinas, como se elas estivessem sendo cutucadas por pequenas agulhas flamejantes, a mesma dor de um rebento ao ser parido, sentia o susto de ter renascido. Espirrava, inspirava e expirava. O gozo de uma inspiração satisfatória e profunda conforme cada célula de seu corpo pedia. Satisfeita, expirava. Sentia agora o carinho do ar subir suas narinas e sumir nos pulmões e então reaparecer misteriosamente de volta a elas, agora aquecido. O atordoamento ia passando aos poucos pela oxigenação. Tudo voltava a fazer sentido. A visão voltava a dar formas as coisas e ela conseguia observa-las. Seus sentidos se aguçavam.
Sua respiração ia acalmando-se aos poucos. Sentia-se bem. Sentia-se pura. Deitou seu corpo vivo sob as águas mais uma vez, deixando apenas seu rosto umedecido por pequenas gotículas de vapor para fora. Ele flutuava leve, quase navegava em calmaria na banheira. Ouvia dentro de seus próprios ouvidos o ruído árido do ar dentro de seu próprio corpo. Via a onda que o movimento de seu abdômen provocava sobre a água. Viva. Os fluídos dos seus pensamentos flutuavam leves e puros. O pequeno prazer de estar viva.
Água era vida. Chorava, mas dessa vez era de felicidade. Sorria. Expurgara o medo de si com aquela água quase benta. Testara-se e vencera. Não afogara-se e não se afogaria mais em si mesma porque havia reconhecido sua força, esse poder instintivo de simplesmente respirar. E essa era a sensação de vencer-se: sentia-se imortal. Quase havia se esquecido do quão belo era estar viva, ter um corpo, uma alma e o simples ato de respirar.
Sentia-se viva.